Associazione Stella, superando barreiras e criando oportunidades para mulheres migrantes na Itália

Uma conversa com Vedrana Skocic, co-fundadora e vice-presidente da Associazione Stella, desde 2009 empenhada em apoiar as mulheres migrantes no acesso ao mercado de trabalho na Itália.

por Juliana da Penha

Do dia 1º de janeiro de 2020, o componente feminino representa 52,4% dos estrangeiros adultos na Itália (ISMU-organização italiana sobre iniciativas e estudos sobre multietnicidade).

O “domínio da língua do país de acolhimento e o acesso ao mercado de trabalho” são dois passos críticos para a inclusão das migrantes, segundo um relatório da Comissão Europeia sobre a integração das mulheres migrantes. O relatório também constatou que as mulheres migrantes têm piores resultados no acesso ao mercado de trabalho em comparação com os homens migrantes e as mulheres nativas. Um dos motivos desse resultado são as obrigações familiares e de cuidado infantil e a dificuldade de ter suas qualificações reconhecidas. Entretanto, existem outros desafios que as mulheres migrantes enfrentam no acesso ao mercado de trabalho, um deles é o racismo estrutural.

Vedrana Skocic tem anos de prática como mediadora intercultural. Além disso, ela tem ampla experiência na coordenação de projetos de orientação para o trabalho para mulheres migrantes. Nesta entrevista, ela nos conta um pouco sobre sua experiência pessoal com a migração. Ela também fala sobre os desafios e ações necessárias para gerar melhores oportunidades de acesso ao mercado de trabalho para mulheres migrantes e para sua participação plena na sociedade italiana.

Uma trajetória da antiga Iugoslávia à Itália

Vedrana é de Sibenik, Croácia “É uma bela cidade situada na baía, criada por um rio antes de entrar no mar. É uma cidade pequena, mas surpreendente”, descreveu ele. Ela chegou à Itália com seu companheiro em 91, quando começou a guerra da ex-Jugoslávia: “Foi muito difícil. Naquela época nós não tínhamos uma idéia clara do que estávamos fazendo. Perdemos nossos empregos e estávamos convencidos de que tudo seria resolvido com a política, com acordos e discussões. Nós nunca imaginamos que uma guerra pudesse começar. Ficamos chocados, mas pensamos que tudo poderia ser resolvido hoje ou amanhã, e que teríamos nossas vidas de volta ao normal. Nunca imaginamos que a guerra poderia durar cinco anos e que criaria todo o terror, todos os problemas, e que destruiria todas as vidas como o fez. Nós não saímos para ficar. Saímos para ficar no exterior por um tempo, até as coisas acalmarem”.

Vedrana teve que enfrentar muitas dificuldades, especialmente a falta de comunicação com todos os membros da família deixados em seu país. Através de alguns contatos de amigos ela chegou em Verona e começou a trabalhar na vindima.

Apesar de ser uma professora qualificada, a impossibilidade de ter essa qualificação reconhecida pelas autoridades italianas levou Vedrana a trabalhar por algum tempo em empregos de baixa qualificação. Ela também trabalhou como faxineira, cuidadora e babá.

Num certo momento, ela iniciou uma formação em mediação linguística e começou a apoiar comunidades da antiga Iugoslávia em Verona. Mais tarde, Vedrana e outros membros das comunidades da antiga Iugoslávia acharam necessário ajudar outras pessoas que tinham passado pelas mesmas dificuldades no novo país. Assim, eles criaram a organização que hoje é a Associazione Stella, desde 2009 apoiando as mulheres migrantes na formação e acesso ao trabalho. A Associazione Stella também organiza atividades culturais para promover o diálogo intercultural.

A Associazione Stella oferece treinamento de orientação para o trabalho, ajudando as mulheres a criar o currículo, melhorar habilidades e competências, buscar um emprego, acessar oportunidades de treinamento e qualificação. Eles também ajudam as mulheres migrantes a entender o complexo e discriminatório mercado de trabalho na Itália.

Devo dizer que tivemos uma recepção calorosa das pessoas que conhecemos e, com algumas, temos amizade até hoje. Por outro lado, o acolhimento de outras pessoas foi frio, distante, no sentido de que você tem que se adaptar ou não há lugar para você aqui.

Entrevista com Vedrana Skocic

Quando você chegou em 91, como era a Itália naquela época? Quais foram suas primeiras impressões e como a Itália acolhia os imigrantes naquela época?

Vedrana: Chegamos em Verona porque uma amiga conhecia alguém que conhecia outra pessoa que trabalhava na vindima. Esta era a única informação que tínhamos. Nós não sabíamos para onde ir e a quem perguntar. Nós não falávamos italiano e logo descobrimos que os italianos não falavam inglês ou alemão, croata ou bósnio. Portanto, a dificuldade de comunicação foi forte. Eu conhecia o estilo de vida italiano porque quando eu era jovem eu vinha muitas vezes como turista. Mas quando comecei a morar na Itália percebi que a idéia que eu tinha era errada (risos).

Somos todos pessoas mediterrâneas, muito calorosas, acolhedoras, mas também com muita rejeição. Houveram pessoas que nos disseram para irmos para casa, mas também muitas pessoas que nos receberam de uma forma positiva, de uma forma verdadeiramente humana. Naquela época não havia centro de imigração, nem mesmo protocolos. Não haviam muitos estrangeiros. Digamos que nós fomos a primeira grande onda de imigração na Itália. Antes de nós havia alguns indivíduos que vieram porque casaram com cidadãos italianos ou vieram para estudar. A única onda migratória na Itália antes da nossa foi a dos albaneses, mas eles já estavam em associação com a Itália. Devo dizer que tivemos uma recepção calorosa das pessoas que conhecemos e, com algumas, temos amizade até hoje. Por outro lado, o acolhimento de outras pessoas foi frio, distante, no sentido de que você tem que se adaptar ou não há lugar para você aqui.

Vedrana e un gruppo di donne che hanno frequentato il percorso di orientamento al lavoro all’Associazione Stella

Quando você chegou na Itália, era uma professora qualificada mas teve que trabalhar na colheita das uvas. Você também trabalhou como governanta, cuidadora e baby-sitter. Até hoje esta é a realidade de muitas mulheres migrantes, que chegam ao novo país com habilidades e qualificações, mas que são impedidas de utilizá-las. Por que isso acontece e o que deve ser feito para mudar essa situação?

Vedrana: A solução para este problema deve vir de cima, porque até que as políticas e o Estado não introduzam o reconhecimento das qualificações obtidas no exterior, não vejo outra maneira.

Neste momento, o reconhecimento das qualificações fica sob a responsabilidade do migrante: ele deve retornar ao seu país de origem, pagar uma quantia enorme para a validação dos documentos, traduzidos para o italiano, submetê-los à Embaixada ou Consulado italiano em seu país de origem que decidirá se essas qualificações serão reconhecidas ou não. A maioria das qualificações não é reconhecida. Trata-se de uma questão de Estado, gerida pela política e só a partir daí se pode encontrar uma solução. Muitas pessoas que conheço, inclusive eu mesma, fizeram esse percurso, que é realmente complicado e financeiramente custoso. É também um processo longo e no final você não recebe nada. Até que do alto não se criem diretrizes e possibilidades políticas, não temos meios para mudar as coisas. A única maneira é chegar aqui, começar a escola aqui, começar a universidade aqui, fazer tudo o que já fizemos em nosso país novamente.

Você deixou os trabalhos de limpeza após participar de um curso de treinamento em mediação intercultural e interlinguística. Daí você começou a trabalhar como mediadora ajudando pessoas da antiga Iugoslávia com a língua italiana. Como você avalia trabalho do mediador intercultural e interlinguístico?

Vedrana: Na minha opinião é um trabalho essencial, pois com esta atividade, no futuro as pessoas saberão onde estão, farão o bem e se sentirão incluídas no país onde vivem. Acredito que a primeira abordagem pode mudar muito e pode evitar muitos problemas futuros para as pessoas: para as crianças que vão à escola, para as pessoas que precisam usar os serviços sociais, para as pessoas que precisam de ajuda nos hospitais ou em qualquer outro serviço de saúde. O mediador interlinguístico e intercultural é um recurso indispensável e valioso. Este mediador garante que migrantes recém-chegados e operadores de diferentes serviços se entendam mutuamente. Eles ajudam as pessoas a se entenderem, a se aceitarem como seres humanos com necessidades e também com a capacidade de ajudar.

Então, se partirmos do pressuposto de que desde o início as pessoas se entendem, entendem onde estão, conhecem seus direitos e deveres, como ter acesso aos serviços, como se inscrever na escola, como usar o hospital e qualquer outro tipo de serviço, podemos dizer que é meio caminho andado. Por outro lado, todos os operadores podem fazer melhor o seu trabalho, sem mal-entendidos. O mediador ajuda os dois lados e ajuda a melhorar a vida das pessoas. O mediador faz com que as pessoas que chegam se sintam bem-vindas porque se colocam em pé de igualdade com as pessoas que estão ajudando.

Acredito que a primeira abordagem pode mudar muito e pode evitar muitos problemas futuros para as pessoas: para as crianças que vão à escola, para as pessoas que precisam usar os serviços sociais, para as pessoas que precisam de ajuda nos hospitais ou em qualquer outro serviço de saúde.

Com a experiência que você adquiriu durante todos estes anos desenvolvendo projetos de orientação para o trabalho, qual é o principal desafio para o acesso das mulheres migrantes no mercado de trabalho na Itália?

Vedrana: Certamente o primeiro desafio é entender a língua, pois sem conhecer a língua o caminho é realmente difícil. Não só na Itália, mas acho que em todo o mundo sem o conhecimento do idioma é difícil acessar o mercado de trabalho e entender onde se encontra. A segunda é o reconhecimento das qualificações. Portanto, se as pessoas estudaram em seu país de origem e têm uma qualificação, se é uma escola secundária, formação acadêmica ou qualquer outra educação, é realmente importante ter essas qualificações reconhecidas.

Se alguém estudou em qualquer outra parte do mundo, na Itália essa pessoa precisa fazer um curso com exames adicionais. Portanto, não podemos negar completamente a qualificação educacional dessa pessoa, pois diminuímos drasticamente as chances de um emprego adequado. Essas pessoas estudaram, têm habilidades e competências, experiência de trabalho reconhecidas em outros países, tudo isso é muito importante. Muitas mulheres eram cirurgiãs, professoras universitárias, vereadoras e todas altamente qualificadas, mas na Itália elas trabalham como cuidadoras ou estão a procura de trabalhos de limpeza. Isto é uma perda para as mulheres porque elas não usam suas qualificações, habilidades e competências e é uma perda também para a Itália. É uma perda para os dois lados. Na minha opinião, estas devem ser as duas primeiras coisas a serem abordadas para facilitar o acesso ao emprego para as mulheres migrantes.

Quais são os principais desafios para manter uma organização de mulheres migrantes?

Vedrana: Que boa pergunta (risos). Certamente há muitos desafios e que aumentam com o tempo. Um dos problemas é que as mulheres precisam desempenhar papéis diferentes: elas têm que sustentar a família, cuidar da casa, das crianças, dos idosos e de todos os membros da família e têm que ter uma renda. Além disso, muitas mulheres estão envolvidas em trabalhos comunitários ou voluntários em suas comunidades, igrejas ou grupos religiosos. Portanto, há muitos desafios para as mulheres. Além disso, com o tempo, especialmente nos últimos anos, está se tornando cada vez mais difícil para as pequenas organizações avançar devido às demandas de estruturação por parte dos financiadores que são cada vez maiores: você precisa ter um escritório, uma conta bancária, um número de telefone, uma assinatura eletrônica. Há cada vez mais exigências para associações participarem de propostas de financiamento ou para continuar suas atividades.

Muitas mulheres eram cirurgiãs, professoras universitárias, vereadoras e todas altamente qualificadas, mas na Itália elas trabalham como cuidadoras ou estão a procura de trabalhos de limpeza. Isto é uma perda para as mulheres porque elas não usam suas qualificações, habilidades e competências e é uma perda também para a Itália. É uma perda para os dois lados.

Existe apoio governamental para todas essas demandas?

Vedrana: Não, não há apoio. Porque a cada nova oportunidade de financiamento, novos requisitos são delineados. Com o tempo, a Associazione Stella sempre se estruturou, mas temos trabalhado apenas com projetos e subsídios ocasionais, que têm um começo e um fim, e você nunca sabe se esses projetos vão continuar no futuro, por isso é impossível participar de novas candidaturas.

Uma das principais barreiras que as mulheres migrantes enfrentam para encontrar trabalho é o racismo. Como podemos combater o racismo e o preconceito na Itália?

Vedrana: Essa é uma boa pergunta. Parece que quase tudo está focado na venda de notícias negativas. Enquanto continuarmos a vender notícias negativas, eu acho que será muito difícil mudar. Ninguém fala de mulheres migrantes de forma positiva e pró-ativa. Ninguém fala de quanto os migrantes contribuem para o pagamento da aposentadoria dos italianos, ninguém fala das coisas positivas de ser mulher migrante, de ser negra. Todos estes temas são sempre abordados de forma negativa. É preciso ter consciência para mudar o hábito de ver essas coisas apenas como um problema. Torna-se um hábito imputar problemas aos migrantes e esta não é a verdade. Ninguém fala sobre o outro aspecto da migração, sobre as histórias dos migrantes.

Até lidarmos com a migração e falarmos sobre ela uma forma honesta, as pessoas não terão consciência disso. Muitas pessoas não têm uma idéia clara da migração e quando falamos sobre isso, elas têm apenas as imagens dos jornais e as notícias que são todas negativas. A situação das mulheres está piorando, e quando falamos de mulheres migrantes e mulheres negras, a situação é ainda pior.

Até que as mulheres sejam revalorizadas como a pessoa que cria a vida, com toda a riqueza que uma mulher traz como pessoa, como mãe, como amiga, como trabalhadora, eu acho que será realmente difícil.

Enquanto continuarmos a distinguir as pessoas pela cor da pele, o que é absurdo e que eu não posso aceitar, a situação de todos os migrantes, principalmente as mulheres, será difícil de mudar. Enquanto não enxergarmos um ser humano como ser humano, eu acho que será muito difícil. Devemos ser honestos e avaliar as pessoas como pessoas: se são negras ou brancas, jovens ou idosas, não importa: existem pessoas boas e pessoas ruins. Isso é o que importa para mim.

Você pode nos dizer como a pandemia do Covid-19 afetou os projetos da Associazione Stella e as mulheres que participam das suas atividades?

Vedrana: No último curso de orientação para o trabalho que organizamos, eu percebi que algumas mulheres não tinham dados em seus telefones. Como resultado, elas não puderam acessar algumas informações que eu lhes dei. Então, agora elas estão incomunicáveis. Nosso público alvo são mulheres com muitas dificuldades financeiras, portanto os dados da Internet são o último pensamento delas. No nosso caso, não faz sentido organizar algo online para as nossas mulheres. Nós criamos um grupo WhatsApp, e eu escrevi para este grupo, mas apenas algumas mulheres responderam.

O escritório de orientação profissional que oferecemos às mulheres migrantes foi suspenso antes do bloqueio porque as propostas de financiamento exigiam requisitos que não podíamos cumprir. Não podemos fazer este trabalho como voluntários (apesar de já o termos feito muitas vezes), temos que contratar pessoal pago porque é um trabalho administrativo muito exigente. Para nós, pensar em manter nossas atividades à distância é complicado. Em nossas ações, as mulheres precisam falar sobre sua experiência de trabalho; é um processo cansativo; elas precisam de tempo e espaço para falar sobre sua experiência de trabalho. Fazer isso em casa, com crianças, é difícil. Agora as escolas estão fechadas e seus filhos também precisam usar a Internet para estudar em casa. Portanto, a prioridade do acesso à Internet é para seus filhos.

Qual é a situação das mulheres que participam das atividades da Associazione Stella durante a pandemia?

Vedrana: Antes da pandemia, as mulheres estavam desesperadas para encontrar um emprego e já era difícil. Agora a situação delas é ainda mais complicada. Eles estão em casa sem trabalho, sem renda, com seus filhos e sem saber o que fazer.

Muita informação ainda está em italiano, então as mulheres que não falam italiano ainda estão confusas, sem entender o que está acontecendo.

Elas estão isoladas, com um bombardeio mediático de informação. A maioria delas são mães solteiras, sem família ou amigos por perto. Antes do isolamento, pelo menos podiam levar as crianças à escola, elas tinham algo a fazer, agora elas estão trancadas em casa.

Enquanto continuarmos a distinguir as pessoas pela cor da pele, o que é absurdo e que eu não posso aceitar, a situação de todos os migrantes, principalmente as mulheres, será difícil de mudar. Enquanto não virmos um ser humano como ser humano, eu acho que será muito difícil. Devemos ser honestos conosco mesmos e avaliar as pessoas como pessoas: se são negras ou brancas, jovens ou velhas não importa: existem pessoas boas e pessoas ruins. Isso é o que importa para mim.

Qual mensagem você quer deixar para as mulheres?

Vedrana: Cada um de nós é linda, esplêndida, já temos tudo dentro de nós, basta que percebamos isso. Nós já temos tudo, na verdade. Eles nos disseram que não temos nada, mas isso não é verdade. Já temos tudo, todas as habilidades, todas as possibilidades, toda a força, todo o poder, só temos que colocá-los em ação.

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