La noir de… Ousmane Sembene

O que mudou nas experiências das trabalhadoras domésticas migrantes desde La noir de… (Black Girl), um filme dirigido por Ousmane Sembene, em 1966?

por Juliana da Penha

La noir de…(Black Girl) “coloca a África no mapa do cinema mundial”, explicou Samba Gadjigo, biógrafo oficial e o maior especialista mundial na carreira de Ousmane Sembene, pai do cinema africano. Esta produção independente, filmada em 1966 e vencedora do prêmio francês Jean Vigo, marcou o nascimento do cinema africano subsaariano.

Embora a excelência de Sembene como contador de histórias, a beleza da fotografia a preto e branco, dos instrumentos musicais tradicionais senegaleses e outras componentes estéticas do filme que são definitivamente dignas de atenção, no entanto, é o legado do colonialismo e da exploração das trabalhadoras domésticas migrantes os aspectos mais significativos deste filme.

O filme narra o destino de Diouana (Mbissine Thérèse Diop), uma jovem senegalesa desesperada para encontrar um emprego em Dakar. Ela estava vivendo um sonho quando um casal francês que morava no Senegal lhe pediu para trabalhar como babá de seus filhos e lhe prometeu uma nova vida na França.

Quando ela aceitou viver com eles em Antibe, percebeu que seu trabalho não seria apenas cuidar das crianças, mas limpar o tempo todo, cozinhar, lavar roupa, ficar confinada, sem um dia de folga e sem pagamento. E todas as promessas de visitar as boas lojas em França nunca foram cumpridas pela “Madame”.

“Agora eu entendo. A patroa queria uma empregada doméstica. Foi por isso que ela me escolheu. Porque estou eu aqui? Sou uma babá ou uma empregada doméstica? “

Mais de 50 anos depois do seu lançamento, é possível dizer que este filme é atemporal. Os problemas que Diouana enfrentou naquela época ainda hoje acontecem. Muitas mulheres ainda estão deixando seus países de origem, pressionadas pelas condições sociais e econômicas, com muitos sonhos de uma vida melhor no exterior. Mas um grande número dessas mulheres está terminando em empregos mal remunerados, exploração, assédio e confinamento. Na maior parte do filme, a voice-over revela os pensamentos de Diouana sobre sua alienação, decepção, solidão e tristeza.

“Porque estou eu aqui? Eu sou um prisioneira aqui”.

Estima-se que existam 11,5 milhões de trabalhadores domésticos migrantes em todo o mundo, aproximadamente 8,5 milhões dos quais são do sexo feminino (Migration Data Portal). Na União Europeia, a grande maioria dos 2,5 milhões de trabalhadores domésticos são mulheres. Um em cada cinco trabalhadores domésticos é um migrante internacional. Um grande número de trabalhadoras domésticas migrantes não conhecem os seus direitos e muitos empregadores não estão comprometidos com as normas do direito do trabalho. Além disso, esse trabalho é realizado em espaços privados e as inspeções do trabalho geralmente não estão autorizadas a entrar nas residências domésticas. Como resultado, as trabalhadoras domésticas migrantes são vulneráveis a abusos.

A vida diária de Diouana revela a realidade de muitas trabalhadoras domésticas em todo o mundo. Ela nunca teve a oportunidade de ver nada na França, apenas sair para comprar mantimentos para o casal. Ela não tinha familiares ou amigos, ficando o tempo todo fechada no pequeno apartamento do casal, limpando e servindo-os. Logo ela percebeu que estava presa.

“A cozinha, o banheiro, o quarto e a sala de estar. É tudo o que eu faço. Não foi para isso que vim a França!”

O pós-colonialismo e as relações raciais são destacados neste clássico do cinema africano. A “madame” trata Diouna como uma escrava. Em uma das cenas, o casal convidou alguns amigos para comer em seu apartamento. A “madame” usa um pequeno sino para chamar Diouana. Enquanto Diouana os servia, um dos homens beijou Diouna e disse: “Eu nunca beijei uma mulher negra antes”. Diouna mostra seu aborrecimento com o ocorrido e a “senhora” diz: “Ele estava apenas brincando. O seu arroz estava muito bom. Estou orgulhosa de você. Agora nos faça um bom café.”

“Diouana, acorda! Levanta sua preguiçosa! Nós não estamos em África! Eu não te contratei para dormir! As crianças estão aqui! Se você não trabalhar você não come!”

As mulheres são particularmente vulneráveis a condições de trabalho exploratórias, trabalho irregular, pouca remuneração, horários de trabalho longos, sem direito a licença saúde, segurança e sem dignidade. Muitas trabalhadoras domésticas migrantes não falam a língua local e, como resultado, não conhecem a lei e os seus direitos. As trabalhadoras domésticas também são vulneráveis à violência sexual.

Ao longo do filme, a decepção e o desespero de Diouna aumentam. Ela percebe que sua vida na França é a prisão e a servidão.

“Como é que são as pessoas aqui? As portas estão todas fechadas, dia e noite. Noite e dia. Eu vim para cuidar das crianças! Onde é que elas estão? Porque é que a senhora está sempre gritando comigo? Eu não sou cozinheira! Eu não sou nenhuma mulher de limpeza. O que é que eu sou nesta casa?”

Na União Européia, o artigo 31º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE estipula que todos os trabalhadores – independentemente da sua nacionalidade ou estatuto migratório – têm direito a condições de trabalho “justas e equitativas” que respeitem a sua saúde, segurança e dignidade. O artigo 5º da Carta proíbe todas as formas de escravatura, trabalho forçado e tráfico de seres humanos. A legislação da UE proíbe também o emprego de nacionais de países terceiros em situação irregular, nomeadamente em condições de trabalho exploratórias (European Union Agency For Fundamental Rights).

É digno de nota que em 1966 não existia um quadro legal de proteção das trabalhadoras domésticas migrantes como hoje. Hoje também existem organizações de apoio e investigadores que prestam atenção à complexa situação dessas trabalhadoras, ajudando-as a lutar pelos seus direitos. Mas existe ainda uma longa jornada para garantir plenos direitos as trabalhadoras domésticas migrantes, vulneráveis às mais severas formas de exploração laboral – a escravatura e a servidão.

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