Conheça a autora que está escrevendo a biografia de mulheres imigrantes

Depois de uma experiência com a imigração em Portugal e publicar 11 livros, a escritora Claudia Canto, criou um selo literário para publicar biografias de mulheres brasileiras que vivem na Europa.

Por Juliana da Penha

Enquanto estava confinada numa mansão em Lisboa trabalhando como empregada doméstica interna, sem a menor noção de que a escrita poderia mudar sua vida, Claudia escrevia. “A única coisa que me movia era aquela vontade de escrever. Eu não tinha dimensão. Tudo o que eu fazia era sem noção nenhuma do que poderia acontecer”.

E foi na escrita que ela encontrou forças para enfrentar a experiência como imigrante sem documentos e viver na pele a realidade das mulheres presas nas armadilhas do mercado internacional do trabalho doméstico na Europa. A história de Claudia poderia ter ficado perdida se não fosse ela a escrever sua experiência em seu primeiro livro “Morte às vassouras, o diário de uma jornalista que se tornou empregada doméstica em Portugal” (2002).

O livro foi a porta de entrada dessa escritora no universo literário, e ela continuou o seu percurso lançando mais 10 livros. Além disso, “Morte às vassouras” foi traduzido para o inglês por Margaret Anne Clarke uma professora inglesa especializada em Estudos Brasileiros e lançado no Reino Unido em duas universidades prestigiosas como a Universidade de Oxford e Kings College em Londres.

Agora o livro está sendo traduzido para o italiano.

“A solidão e a falta de contato com a família. Era uma prisão que eu estava vivendo.

Quando o passado ainda é presente

Cláudia conta que uma das críticas que recebeu sobre o livro foi de uma antropóloga, ela afirmou que situações de exploração de trabalhadoras domésticas imigrantes na Europa ficaram no passado. Porém, quando lemos o livro, nos damos conta que é uma história atemporal. Apesar de ter acontecido em 2002, a história que Claudia viveu ainda se repete em 2020.

A situação das trabalhadoras domésticas migrantes pouco mudou “A principal mudança era que na época o uso da Internet estava ainda começando e as coisas não eram mostradas como hoje” explica Claudia.

De todas as dificuldades que enfrentou, como viver confinada a servidão, com apenas uma folga por semana que duravam algumas horas, ela conta qual foi a maior dificuldade “A solidão e a falta de contato com a família. Era uma prisão que eu estava vivendo. Era uma prisão muito mais psicológica do que física. Eu poderia ter pegado a minha mochila e dito: “Vou embora para o Brasil, vou voltar.” Mas eu tinha investido tudo naquele sonho e com o tempo eu percebi que aquela história poderia mudar a minha vida. E ali nasceu uma escritora. Então eu me apeguei nisso.”

A resiliência de Cláudia é uma característica presente na história de muitas mulheres que vivem em outro país. E é isso que ela quer mostrar com o seu trabalho escrevendo essas biografias.

O primeiro livro de Cláudia, publicado em 2002, sobre sua experiência com a imigração

“Com os meus livros de ficção, de poesia e autobiografia eu não estava conseguindo viver da literatura.”

Um novo percurso profissional e de vida

“Com os meus livros de ficção, de poesia e autobiografia eu não estava conseguindo viver da literatura. Então eu fiquei me debatendo para saber como eu faria para um dia poder me sustentar com a literatura”. O percurso de Cláudia para encontrar o seu verdadeiro caminho na literatura não foi simples. Depois de reconhecer que seria muito difícil viver das vendas de livros, começou a estudar alternativas.

Iniciou a fazer palestras em diversas instituições, foi apresentadora de um programa de rádio, apresentou um programa de entrevistas com um canal no Youtube. Nas palestras conseguia vender alguns livros, mas mesmo assim em quantidades que não eram suficientes para poder realizar o sonho de viver e pagar suas contas com a literatura.

Quando estava quase desistindo, uma oportunidade de viajar para a Suíça e os contatos que fez no país com mulheres brasileiras que vivem lá, começaram a mudar o rumo da sua história. Foi convidada por um grupo de escritoras brasileiras, a lançar o livro “Morte às vassouras” num evento na Suíça. Por conta da pandemia, a viagem foi adiada, mas outras oportunidades surgiram.

Ela descobriu que outras mulheres também querem contar suas histórias através dos livros. E assim, quando Claudia divulgou no Facebook que estava escrevendo biografias, encontrou mulheres interessadas no seu trabalho. Foi assim que ela escreveu a sua primeira biografia de uma mulher imigrante, “Flor do sertão” de Maria Staub, uma mulher brasileira de uma das regiões mais pobres do Brasil, o Piauí que vive na Suiça.

“Essas narrativas as ajudam nesse contexto, porque elas se ouvem depois que elas me mandam o áudio e começam a entender em que momento elas se perderam na vida.”

A literatura como processo de auto conhecimento e cura

“Quando comecei esse processo de buscar um meio de sustento através da literatura eu já estava estudando a física quântica. Então eu já busquei com a certeza do que iria acontecer, eu só não sabia como seria. Eu sabia que eu iria viver da minha literatura. Dentro dessa percepção e dessa objetividade que eu já tinha, as coisas começaram a acontecer. Muitas pessoas acreditam que isso seja fé”, explica Cláudia.

Ela acredita que esse trabalho também é um processo de cura. O ato de contar suas histórias, muitas vezes se torna terapêutico, já que muitas mulheres curam feridas que ficaram abertas. “Essas narrativas as ajudam nesse contexto, porque elas se ouvem depois que elas me mandam o áudio e começam a entender em que momento elas se perderam na vida. Freud mesmo dizia que no processo terapêutico falamos mais e o terapeuta nos ouve, porque quando falamos conseguimos encontrar as linhas que ficaram soltas nas suas vidas e que nos levaram para determinadas situações.”

O segundo livro de Cláudia, sobresua experiência como enfermeira numa clínica psiquiátrica

“Agora nós mulheres temos a oportunidade de escrever as nossas histórias”.

Desconstruindo o monopólio das biografias

Quando pensamos em biografias imaginamos nomes de pessoas importantes. Porém, hoje as pessoas comuns também podem ter suas histórias de vida publicadas. Cláudia vê essa mudança como uma quebra de paradigmas “As biografias eram reservadas apenas para atores, estrelas de TV, de Hollywood. É maravilhoso isso que está acontecendo. Existem vários aspectos nesse processo, mas um dos mais importantes é que a história foi sempre contada pelas pessoas que estavam em evidência, que tinham mais dinheiro, na maioria das vezes eram brancos, os supostos vencedores. E tem um outro lado da história que não é contado. Agora nós mulheres temos a oportunidade de escrever as nossas histórias.” explica Claudia.

No seu processo de criação dessas biografias, Cláudia recebe as narrações em áudio e aos poucos está desenvolvendo uma identidade para esse trabalho, feito em sinergia com essas mulheres.

“Vou compondo a psique dessa mulher, tanto através da narrativa quanto do tom de voz delas. E também quando nos falamos e nos olhamos. Então eu faço uma investigação geral, muito fecunda sobre a vida dessa mulher.”

O trabalho de se aprofundar nas experiências, que muitas vezes são doloridas, não é uma tarefa simples. “Não é simplesmente um relato. O que tento fazer é adentrar na alma dessas mulheres. Em muitos áudios essas mulheres estão chorando, porque são feridas que estão ainda expostas e que elas nunca tiveram a oportunidade de tratarem com um psicólogo, porque sabemos que é muito caro.”

O terceiro livro de Cláudia, uma ficção sobre empoderamento feminino

“Em muitos áudios essas mulheres estão chorando, porque são feridas que estão ainda expostas e que elas nunca tiveram a oportunidade de tratarem com um psicólogo.”

Descobrindo novos caminhos literários

A autora está num processo de compreender o exercício literário que está realizando escrevendo a biografia dessas mulheres. “Eu me vejo tão envolvida nas histórias, que muitas vezes eu escrevo em primeira pessoa, como se elas mesmas estivessem escrevendo suas biografias. E isso faz com que elas se sintam mais abraçadas nas obras que estão nascendo. Eu falo que o livro tem que ser ela. Quando escrevo algo em que elas divergem, então eu não coloco no livro. O trabalho tem que ser adequado a ela, porque é a história dela”, explica Claudia.

Ela se distancia da posição de juíza ou crítica, simplesmente escreve as histórias. Porém, usa de recursos que auxiliam esse trabalho “Eu abuso e uso de uma linguagem e um vocabulário mais refinado, um português bastante erudito, vez por outra coloco gírias dos locais de onde elas vieram para adequar a época. Eu dou um aprofundamento não tão poético, mas bastante lírico e muitas vezes uso recursos ficcionais, metafóricos para transcrever e dar mais fulgor e lirismo para essa história.”

“Eu sou da periferia, sou uma mulher negra, se não fosse eu a contar a minha história, essa história morreria comigo.”

Histórias que poderiam ser filmes

“Eu sou da periferia, sou uma mulher negra, se não fosse eu a contar a minha história, essa história morreria comigo, como a de milhares de outras mulheres negras que moram na periferia, que são heroínas anônimas, que tem uma história digna de cinema. Essas histórias jamais serão contadas, se nós mesmos não nos tornamos protagonistas das nossas histórias.” afirma Claudia. Ela conta que todas as histórias que está tendo a oportunidade de conhecer, poderiam tranquilamente se tornar roteiros de filmes. “Eu escuto muitas histórias de mulheres marginalizadas, que são histórias maravilhosas, que não dariam trabalho nenhum para um roteirista de Hollywood ter que usar da ficção para contar. Então são histórias riquíssimas da vida real e que ficam por aí perdidas.” 

Claudia conta que uma das biografias que está escrevendo é de uma mulher suíça que vai contar um pouco sobre situações de trauma, como a superação de um aborto. Nesse processo, conta com a ajuda de seu companheiro, o alemão radicado no Brasil Tomas Mielenhausen, que a ajuda fazendo traduções na língua alemã e inglesa. “Ela manda os áudios em alemão, o Tomas traduz para o português e eu escrevo em português, depois o Tomas traduz para o alemão”, explica Claudia.

O quinto livro de Cláudia, onde conta a sua história de vida

“Na maioria dos casos das mulheres brasileiras que estão na Europa, tem sempre uma linha tênue que as une e que me une também porque eu também vivi como imigrante sem documentos na Europa”.

A narrativa da migração

“Na maioria dos casos das mulheres brasileiras que estão na Europa, tem sempre uma linha tênue que as une e que me une também porque eu também vivi como imigrante sem documentos na Europa. Normalmente essa linha é de assédio moral, assédio sexual, abusos e discriminação. Então, essas feridas são muito similares. O que diferencia essas histórias é a infância e como essas mulheres se moldaram para enfrentar tudo isso”, explica Cláudia. Ela sente que hoje é o melhor momento para se dedicar a esse trabalho que ela vê como missão. “Eu alcancei uma maturidade para falar sobre esses assuntos. Antes, a minha rebeldia talvez não me permitia ver muitas coisas como vejo hoje.  Se tivesse escrito antes esse trabalho com essas biografias não seria tão fecundo. Hoje eu acredito na revolução através do amor, do sagrado feminino. Então eu busco encontrar essa centelha divina, tento encontrar esse divino nessas mulheres para poder transpassar essa revolta, que ainda está tão presente na experiência de muitas delas.”

O trabalho de Cláudia com as biografias de mulheres imigrantes está gerando frutos e ela criou o selo literário Cláudia Canto para publicar essas biografias. Ela trabalha com uma equipe que garante todo o processo de produção do livro, publicação, tradução para o inglês e alemão e divulgação.

Para Cláudia, esse trabalho é parte de um processo coletivo, de uma alternância de poder e de conhecimento no mundo. E quando pergunto como ela vê esse trabalho no futuro, ela acredita que essas histórias vão virar filmes. Mas o mais importante para ela, é que agora, as mulheres têm voz. “Acredito que iremos nos unir através dessas histórias para nos fortalecermos e ganhar o mundo. Sem dúvida nenhuma a revolução será feminina. Quanto mais a mulher despertar para o seu sagrado, mais ela se fortalecerá e conseguirá se livrar dos abusos.”

“Quanto mais a mulher despertar para o seu sagrado, mais ela se fortalecerá e conseguirá se livrar dos abusos.”

www.claudiacanto.com.br

2 thoughts on “Conheça a autora que está escrevendo a biografia de mulheres imigrantes”

  1. Excelente posicionamento, a Claudia tem o dom não só da palavra, mas da escuta com empatia. Tenho certeza que ela está escrevendo histórias que um dia serão filmes com bilheteria garantida. Desejo muito sucesso.

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